Romance mais importante de Nélida Pinõn foi escrito em Congonhas

 


Em 1984, a escritora Nélida Pinõn, imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), lançou o livro “República dos Sonhos”. Neste romance, considerado a sua obra mais importante, Madruga é o jovem camponês que deixa a Galícia natal para embarcar num navio com destino ao Rio de Janeiro, tendo ao lado o companheiro Venâncio. A partir de um emprego humilde numa pensão da Praça Mauá, a vida de Madruga descreve uma trajetória de êxitos e fracassos que põem à prova seus ideais de liberdade e felicidade. Décadas depois, cabe à neta Breta juntar os fragmentos e reconstituir a história de sua família, que se confunde com a história recente do país.

Para escrever a história, Nélida foi para Congonhas no dia 24 de agosto de 1981, onde refugiou-se durante 21 dias em total isolamento.[1] No carro, além das malas, levou a televisão, almofadas, vinho do Porto, duas máquinas de escrever, gravadores, painéis de cortiça, mesa e cadeira especiais para escrever e discos do inesquecível Schubert. “Busco certo tipo de exaltação que se afine com o momento do meu texto. Em muitos capítulos, eu ouvi os improvisos de Schubert; em outros, uma única música popular: O sonho do impossível”[2], revelou Nélida em entrevista.

Na cidade, de forma bem discreta para fugir da mídia, a escritora hospedou-se no Hotel Colonial. “Fui para Congonhas, Minas Gerais. Aluguei um quarto de pousada, que dava em frente para os 12 Profetas do Aleijadinho. Foi ali que nasceu o meu livro A República dos sonhos[3], afirmou ela em uma entrevista ao Jornal do Brasil.

Para trabalhar, alugou dois quartos e, em num deles, montou seu escritório, onde trabalhava de oito a nove horas por dia. Para evitar paradas durante o horário do almoço, ela comia alimentos obtidos no café da manhã. Segundo o Jornal do Comércio, a escritora, que foi a primeira mulher a presidir a ABL, “só conversava com as pessoas à noite, durante o jantar”. Em 1998, em um entrevista histórica, Pinõn disse: “Eu lidava com histórias com mais de cem anos e chegava até o século XII. O tempo não tinha uma sincronia e eu não podia ser interrompida. Ninguém do meu afeto me visitou nesse período”.[4]

Após 21 dias morando em Congonhas, Nélida voltou ao Rio de Janeiro, onde terminou a escrita do romance A República dos Sonhos, publicado pela Editora Record em 1984, que, posteriormente, foi traduzido para o francês, inglês, espanhol, italiano, galego, e mais recentemente para o chinês.

Há alguns anos, após ter descoberto essa importante e desconhecida efeméride da história de Congonhas, conversei com meu querido cineasta Júlio Lellis[5], que conheci por meio da minha amiga Maria da Paz[6]. Sabendo que ele era amiguíssimo da escritora, procurei saber mais sobre o assunto. Para minha surpresa, contou-me que havia escrito um documentário sobre a obra, um projeto que ele queria iniciar em breve. Meses depois, para minha grande emoção, Júlio gravou belíssimo áudio de Nélida e me mandou pelo WhatsApp:

 

Olá, senhor Paulo, que prazer! Aqui estamos, celebrando a vida, o talento, a cultura brasileira na “Casa de Machado de Assis”. Meu amado amigo Júlio Lellis, acabou de transcrever com muito ardor e fé, o projeto que ele tem em relação ao meu romance A República do Sonhos, com seu apoio magnífico, a sua capacidade de entender o significado da cultura para um país como o nosso, sobretudo para Minas. E ele disse se eu iria a Congonhas? Eu disse, meu Deus, como eu não iria a Congonhas, se Congonhas foi essencial na minha vida? Irei a Congonhas sim, pode contar comigo. Vou fingir como quando eu cheguei a Congonhas no passado, com um carro apinhado de coisas, e todo mundo do hotel, da pensão Cova do Daniel [na verdade, Cova do Daniel era o restaurante, o hotel se chamava Colonial], perguntou: “A senhora é da TV Globo?”. “Não, eu sou não!”. Mas eu vou chegar aí, com o território das ilusões. E será um prazer conhecê-lo, Paulo. Um abraço carinhoso e muito obrigada! Tratem bem a Júlio Lelles, que é um grande talento!

 

            Infelizmente, Nélida Pinõn, uma das escritoras brasileiras mais conhecidas e traduzidas internacionalmente, não retornou a Congonhas devido ao seu falecimento em 17 de dezembro de 2022. De toda forma, sua presença na “Cidade dos Profetas” certamente marcou para sempre a nossa história. Viva para sempre Nélida, a autora que amou Congonhas!

 

Anexo presente na Edição Comemorativa de 30 anos de A República dos Sonhos, publicada em 2021 pela Editora Record. (Acervo: Renan Merces)

 

Paulo Henrique de Lima Pereira

Membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais
Academia de Ciências, Letras e Artes de Congonhas
Academia de Ciências e Letras de Conselheiro Lafayette
Instituto Histórico e Geográfico de Congonhas



[1] Jornal do Brasil – Caderno B, 16 de agosto de 1984.

[2] O Globo, 30 de agosto de 1984.

[3] Jornal do Brasil, 12 de maio de 1990.

[4] Jornal do Comércio, 5 de janeiro de 1998.

[5] O diretor Júlio Lellis é cineasta, premiado no Brasil e no exterior,e faz sua segunda incursão nas artes cênicas após o sucesso na direção da leitura de trechos de A Montanha Mágica, de Thomas Mann, na FLIP (Feira Literária de Paraty) em 2024.

O diretor, desde a primeira leitura que fez do poeta, ficou encantado. Ele descreve que,à leitura de cada poesia, ele se via escalando montanhas e que, ao chegar ao cume,lhe era revelado um mundo desconhecido e magnífico.

Júlio Lellis, mineiro, conseguiu identificar-se com a poesia gaúcha de Carlos Nejar, que revelava o caráter universal de sua obra, e imaginou compartilhar com o público a sua emoção singular, trazendo em cena o próprio autor acompanhado de uma atriz e trilha sonora tocada ao vivo. A atriz escolhida foi Vannessa Gerbelli, reconhecida por seus trabalhos e prêmios na TV, no cinema e no teatro. Ela, não por acaso musa inspiradora do poeta, consegue dar a emoção exata às imagens inéditas das poesias dele.

Além de diretor do espetáculo, Júlio Lellis é diretor e produtor executivo da Sinos Filmes. O nome da produtora evoca Minas Gerais, do badalar dos sinos, que nos remetem a grandes atitudes e mudanças. Os dobres e repiques dos sinos nos convidam a contar histórias. Nas palavras do diretor: “Quando eu e meus dois sócios, Breno Pessurno e André Damin, fomos a Minas, em cada igreja que entrávamos, fazíamos um pedido: ‘Que nos ajudassem a contar histórias.’ E os sinos tocavam alegremente. Daí surgiu a inspiração do nome da produtora. Tristes ou alegres, os sinos soam memórias de um povo. E é assim que a produtora vem seguindo, contando em centelhas a memória de um país e de suas personalidades.”

Entre as produções da Sinos Filmes, todas dirigidas por Júlio Lellis, está o documentário de longa-metragem Histórias Íntimas, baseado no livro homônimo da escritora e historiadora Mary Del Priore,que ganhou o prêmio de melhor documentário de longa-metragem de 2014 da LABRFF (Los Angeles Brazilian Film Festival), em Los Angeles.filme fala sobre a sexualidade no Brasil desde os tempos da colônia até os dias atuais. Cerca de 60atores, que representaram personagens históricos de várias passagens do livro, estão envolvidos na obra. No longa-metragem, há relatos da própria escritora, além de depoimentos de Lucinha Araújo, Ivan Lins, Marília Pêra, Lucélia Santos, Jean Wyllys e da escritora Nélida Piñon.Em paralelo, cenas de passagens do livro foram encenadas e filmadas com um elenco composto por atores como Nadia Lippi,Cristina Prochaska, Thiago Picchi, Léa Garcia,Valéria Monteiro, Thalita Lippi, Sonia Clara, entre outros.

Notas sobre o filme saíram em várias colunas de jornalistas como por exemplo O Globo. Ivan Lins regravou alguns de seus maiores sucessos, "Começar de Novo", "Bilhete" e "Vitoriosa" especialmente para o filme.

[6] Historiador, escritora e professora aposentada, Maria da Paz é membro do Instituto Histórico e Geográfico de Congonhas (IHGC) e da Academia de Ciências, Letras e Artes de Congonhas (ACLAC). Pesquisadora da história de Congonhas, especialmente do distrito Alto Maranhão, é autora do livro “Geraldo Lucindo: fé, sonho e trabalho”, publicado em 2016.

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