Bibi Ferreira estreou no cinema nacional em filme rodado em Congonhas


 

Em um momento marcante da história do cinema brasileiro, a consagrada atriz Bibi Ferreira fez sua estreia nas telonas com o filme Almas Adversas, longa que não apenas introduziu seu talento ao público cinematográfico, mas também inseriu a cidade de Congonhas (MG) no mapa do cinema nacional. A produção, conduzida pela Tapuia Filmes e distribuída pela Cooperativa Cinematográfica, contou com roteiro do renomado escritor Lúcio Cardoso, direção do cineasta bósnio Leo Marten — figura significativa no cinema brasileiro — e produção de João Tinoco de Freitas.

O planejamento do filme teve início em 1946, quando o Brasil começava a buscar novas possibilidades narrativas e visuais no cinema. A revista Hollywood celebrou, na época, a decisão ousada da produção em filmar fora dos estúdios: uma prática ainda pouco comum no país. Conforme destacou o jornalista Tony França, era algo que “tanta falta vinha fazendo ao nosso ainda incipiente cinema”[1].

As filmagens começaram em setembro de 1948 e se estenderam por 20 dias em Congonhas. Além de Bibi Ferreira e um elenco já conhecido, a produção incorporou moradores locais como figurantes. O jornal A Noite registrou o impacto da produção no cotidiano local: “Congonhas foi invadida por verdadeiro exército de artistas, cinegrafistas e técnicos”[2].

O então prefeito de Congonhas e também cineasta, Nicola Falabella, demonstrou entusiasmo com a movimentação cultural trazida pela filmagem. Em entrevista, afirmou que o acontecimento era uma das “mais importantes de Congonhas desde o aparecimento do Aleijadinho”[3]. A presença do cinema na cidade foi ainda exaltada por Azael de Oliveira, crítico do Diário Carioca, que elogiou a escolha de Congonhas: “Ambiente caracteristicamente mineiro. Aliás, pode-se dizer da produção inteira que é um hino à terra mineira”[4].

Apesar da admiração geral, Lúcio Cardoso, autor do roteiro, compartilhou impressões menos idealizadas de sua passagem pela cidade. Em um testemunho direto e sincero, escreveu:

O mar, a proximidade do mar torna as coisas mais limpas. Lembro-me de Congonhas do Campo, tão pobre quanto as mais pobres aldeias de pescadores que ora visito nos arredores de Niterói — e nenhuma delas possui aquele ar de sujeira e de moléstia, que tantas vezes surpreendi na velha cidade de Minas. Não falo, é claro, da grandeza que Congonhas possui — toda ela hirta, de cinza e pedra, erguida à beira da estrada como um vasto monumento — falo dessa tristeza suja e castigada que deparei nos seus tristes becos, e que parece ausente desses povoados, repletos de azul que vêm desaguar à beira do mar. [5]

A trama de Almas Adversas gira em torno de Célia (Bibi Ferreira), mulher marcada por uma profunda injustiça cometida pelo marido. Buscando redenção, ela se refugia em Congonhas para cumprir uma promessa. No entanto, sua presença misteriosa logo levanta suspeitas entre os moradores. Paralelamente, um escritor solitário chega à cidade com o intuito de concluir um livro, mas acaba se envolvendo com a história de Célia, enfrentando seus próprios fantasmas. Um assassinato injustamente atribuído à protagonista intensifica o drama, que também aborda memórias, fé e reconciliação.

Bibi Ferreira ao lado de Vina de Souza e Rosita

A estreia de Bibi Ferreira foi cercada de expectativas. Conforme descrito por críticos da época: “O elenco é um dos melhores entre quantos atuaram em qualquer filme nacional. Apresenta de início dois nomes sobejamente conhecidos: Bibi Ferreira, cuja única aparição no cinema foi feita através da Inglaterra, sob direção de J. Arthur Rank, e Graça Mello, o grande galã nacional”[6].

Décadas depois, em 2023, o cineasta Luiz Carlos Lacerda[7] concedeu entrevista ao autor deste artigo, Paulo Henrique de Lima, em que relembrou: “Em 1948, meu pai produziu Almas Adversas, no qual trabalha a Bibi Ferreira, pela primeira vez no cinema”[8].

Além de Congonhas, parte do filme foi rodada nos estúdios do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), no Rio de Janeiro — o primeiro órgão estatal dedicado ao cinema no Brasil.

O lançamento oficial ocorreu em 1950. As críticas foram divididas. Enquanto muitos celebraram a ousadia da produção e a escolha do elenco, outros foram menos generosos. O historiador Domingos Demasi, em seu livro Chanchadas e Dramalhões (2001), opinou: “Religiosidade e oportunismo fizeram Almas Adversas, de Leo Marten, que transformou em dramalhão a história da viagem de uma penitente a Congonhas, Minas Gerais. Nem Bibi Ferreira escapou ao desastre”[9].

Bibi Ferreira e o ator Graça Mello

Apesar das divergências críticas, Almas Adversas permanece como uma peça importante na história do cinema brasileiro. Sua relevância vai além da estreia de uma das maiores atrizes do país. Representa também um momento de transição no cinema nacional — quando as produções passaram a buscar inspiração e autenticidade fora dos estúdios — e uma oportunidade única de registro histórico da cidade de Congonhas em plena efervescência artística.


Paulo Henrique de Lima Pereira
Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais - IHGMG
Academia de Ciências, Letras e Artes de Congonhas - ACLAC
Instituto Histórico e Geográfico de Congonhas - IHGC
Academia de Ciências e Letras de Conselheiro Lafayette - ACLCL


[1] Hollywood, 1946, p. 1263.

[2] A Noite, 23 de setembro de 1948.

[3] Letras e Artes – Suplemento de A Manhã, 20 de fevereiro de 1949, p. 15.

[4] Diário Carioca, 13 de fevereiro de 1949, p. 2.

[5] CARDOSO, Lúcio. Todos os diários – Volume 1. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2023, p. 157.

[6] Letras e Artes – Suplemento de A Manhã, 20 de fevereiro de 1949, p. 15.

[7] Luiz Carlos Lacerda, também conhecido como Bigode, é um cineasta, roteirista e produtor brasileiro nascido em 1945 no Rio de Janeiro. Iniciou sua carreira no cinema nos anos 1960, colaborando com nomes como Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos. Dirigiu filmes marcantes como Mãos Vazias (1971), Leila Diniz (1987) e For All – O Trampolim da Vitória (1997), este em parceria com Buza Ferraz. Além de sua atuação no cinema, Lacerda é também curador e figura ativa na preservação da memória audiovisual brasileira.

[8] Entrevista concedida ao autor em 2 de agosto de 2023.

[9] DEMASI, Domingos. Chanchadas e dramalhões. Rio de Janeiro: Funarte, 2001, p. 239.


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